Porém quadro horrível e que só não me fez arrepias os cabelos da cabeça pelo simples fato de alma não ter cabelos, é o que vou contar-lhes agora. Depois de ter visto muita e muitas coisas estranhas e que, segundo julgo se acham bem acima das cogitações humanas e quando já me dispunha seguir para a Sala dos Despachos, de onde, só então, eu deveria ser sobrecarregado com as penas que me fossem impostas pelos poderes competentes do inferno, naquele exato momento comecei a ouvir gemidos, bandos de dor e lamentações as mais comoventes, que partiam de por trás de um cômodo que se apresentava à minha frente. Não quis ou não pude conter a curiosidade que de mim se apoderou e para aquele local me dirigi, seguindo de perto pelo meu sapientíssimo guia. O quadro que ali se me deparou, meus amigos, seria capaz de comover até a uma rocha: uma alma, entregue ao maior desespero estorcia-se, chorava, dava consigo por terra, talvez na ânsia de encontrar lenitivo para o seu sofrimento.
— Eis ali as conseqüências das loucuras da mocidade, disse-me o Diabo Azul1. Aquele espírito animava o corpo de um jovem romântico, exaltado em todos os seus sentimentos e que, esquecendo-se de que na terra tudo é passageiro, tudo é ilusão, deixou-se dominar pela paixão que lhe despertara uma mulher.
Comecei a ficar de orelha em pé, mas o Diabo Azul continuou:
— Resultado: certo dia a beldade o mandou, com toda a sua paixão, às urtigas e ele, não podendo suportar as magos resultantes da traição de que se julgava vítima, suicidou-se. Pois bem. É preciso que você fique sabendo desde já que, se já aqui no inferno espíritos que se divertem mais do que sofrem, em o número destes não se podem incluir os que se matam por questões de amor. Para esses desgraçados, não há aqui nenhuma contemplação, nenhuma piedade.
Naquele momento, meus amigos, minhas orelhas já estavam bem empezinhas porque, e isto eu ainda não havia doto, também eu me havia suicidado pro questão de amor. Contudo, desejoso de saber a causa de tão grande desespero, não sei como, ainda tive coragem de perguntar.
— Mas afinal o que é que o faz sofrer daquele modo.
— Nós – replicou-me o fiel servidor de Satã — temos aqui um castigo terrível, preparado especialmente para essa espécie de condenados às penas eternas e que vem a ser o seguinte: quando o espírito aqui chega nós, por artes diabólicas, como dizem vocês lá na terra, fazemo-los apaixonar-se por uma daquelas mulheres-espíritos que você ainda há pouco viu, mulheres que, afinal, outra coisa não são que verdadeiros demônios disfarçados; depois que o idiota se acha apaixonado quanto baste aos nossos fins, a mulher, isto é, o demônio, começa a fazer-lhe toda a espécie de pirraças, de sorte que o desgraçado termina por desejar outra morte. Damos-lhe, então, para beber, um líquido (a que os vivos dão o nome de filtro), a título de veneno capaz de acabar com a vida de qualquer espírito e ele, tomando-o, cada vez mais louco vai ficando. Digo-lhe ainda, antes de você me pergunte, que, depois de tomar a primeira dose do tal líquido, a que por tapeação damos o nome de Espiriticida, mesmo que não queira, impelido por uma força estranha ele continua a tomá-lo, de sorte que o seu tormento vai crescendo cada vez mais.
Eu é que não quis ouvir mais. Estava satisfeito e enquanto o Diabo Azul piscou um olho e preparava-se para piscar o outro, já eu me encontrava em frente à enorme porta que naquele preciso momento o L. Melo2 havia escancarado para receber o meu Barão de Faria, que também tinha cometido a loucura de matar-se por questões amorosas. Precipitei-me pela porta e agarrando o recém-chegado pela cintura, arrastei-o comigo, berrando: fujamos daqui, desgraçado; será muito melhor sofrer todas as torturas que nos infligem as mulheres lá na terra, do que agüentar no inferno sofrimentos mil vezes piores por amor de demônios fantasiados de mulheres.
E desandamos a descer rumo à terra até que, faltando-me apoio para os pés, precipitei-me de ponta-cabeça no meio do quarto, levando debaixo do braço a almofada da minha cama.
Que pesadelo horrível, meus amigos!
Prof Wanderley Ferreira de Rezende
trecho do Livro: Gaveta Velha.
Próximo trecho: Crisélia, a 10ª Musa do Panteão Greco-brasileiro.
Trecho anterior: Quinzinho continua seu passeio pelo Inferno.
1. Diábo Azul, pseudônimo do agrimensor e rábula varginense Luiz Alves Rubião, autor de uma série de contos regionais muito interessantes, que publicava no “Arauto do Sul”.
2. Leopoldo de Melo Pádua, proprietário e diretor do jornal “Arauto do Sul”, semanário que circulou em Varginha durante muitos anos.
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