(...) vamos tentar uma parábola que o leitor poderá admitir ou rejeitar a seu bel-prazer.
As obras de fisiologia nos ensinam que com um olho só percebemos todos os objetos num mesmo plano. Uma experiência fácil nos permite verificar este fato. Se fechamos um dos olhos, a imperícia de nossos gestos prova que perdemos o sentido da profundidade onde se dispões os objetos. Mas a natureza nos dotou de dois olhos, cuja separação permite a cada olho perceber os objetos sob um ângulo ligeiramente diferente. Basta abrir e fechar alternadamente cada um dos olhos, diante de objetos dispostos em profundidade, para percebemos isto. Se nosso olhar se concentra sobre um objeto próximo de nós, nossos olhos são forçados a ficar ligeiramente estrábicos, para evitar o desdobramento da imagem. Se, ao contrário, nosso olhar se fixa, através das frestas de uma janela, por exemplo, sobre um objeto distante, os objetos do primeiro plano, as frestas neste caso, formam duas imagens. Nosso cérebro corrige esta dupla impressão das retinas "esquecendo" o desdobramento dos objetos do primeiro plano, que se tornam incômodos no momento em que disto tomamos consciência. Os psicólogos nos declaram que um olho, por si mesmo, não tem o sentido da profundidade, mas que é pelo esforço dos músculos oculares (que afazem convergir ou divergir os globos dos olhos) que permitem ao cérebro reconstruir a profundidade de planos.
Ora, este esforço dos músculos oculares é coordenado pelo sistema nervoso com os esforços dos músculos motores: a criança, desde o momento que pega os objetos e que sabe andar, aprende a ver corretamente e a se deslocar sem choques entre os obstáculos que a cercam.
Tentemos agora aplicar nossa comparação ao problema do comportamento. Suponhamos que o homem seja dotado de duas visões: uma visão "exterior" que lhe permite perceber o mundo sensível, a realidade "tal qual é", e uma visão interior, que lhe revela o Reino, quer dizer, a realidade "tal qual deve ser".
O homem é semelhante a uma criança que ainda não sabe sobrepor as duas imagens. Cada uma delas permanece plana. Com efeito, o mundo "tal qual é" não tem profundidade, é uma sequência de fenômenos desprovidos de bom-senso, sem começo, nem fim. Igualmente o mundo "tal qual deve ser", o Reino, é plano. Isolado de realidades sensíveis, nada mais é que um "ideal" sem substância, pois as idéias necessitam do suporte da matéria para se tornarem realidades.
Ora, o homem adulto deveria ser capaz de ter da realidade uma visão "estereoscópica". Seus olhos e seu espírito deveriam poder sobrepor as duas imagens do mundo. Cada uma das imagens ganharia ao mesmo tempo um relevo, uma profundidade e um sentido que a visão monocular não lhe pode dar.
Jesus Cristo é o homem adulto, o homem normal cujo olhar sobrepôs totalmente o mundo tal qual é e o Reino de Deus, obtendo assim uma visão em profundidade da natureza das coisas, da origem e do fim da humanidade.
Jesus não estava, portanto, "enganado sobre as datas" quando declarava: "o Reino de Deus está próximo, arrependei-vos e crede na boa-nova". Exprimí-la unicamente a visão correta do mundo, que era a sua.
Mas se Jesus não se enganou, quem então se engana? Pois bem! A segunda e a terceira gerações cristãs, e a Igreja inteira, a nossa própria geração, na sua enfermidade, deixou-se distender por novos tempos, uma vez que não mais sabe fazer coincidir o mundo "tal qual deve ser" com o mundo "tal qual é". Ora, na ausência de uma visão correta do mundo, a história nada mais é que o prolongamento de um caos.
Como nossa geração reencontrará uma visão correta do mundo, senão realizando um esforço muscular necessário a uma visão estereoscópica do mundo: o Reino de Deus está iminente, arrependamo-nos e creiamos na boa-nova?
O Evangelho não pode ser escrito como uma doutrina filosófica: ver corretamente o mundo com seu relevo e sua profundidade não é redigir uma declaração de fé, mas é agir guiado pela fé. A sobreposição das duas imagens realiza-se cada vez que um homem dócil a Jesus Cristo, esquecido dos determinismos que o liga, comporta-se no meio do mundo, no instante presente, conforme a vontade de Deus.
Cf.: p.225.JESUS CRISTO e a Revolução Não-Violenta. André Trocmé. Editora Vozes ltda. 1973. Tradução de José Alamiro de Andrade, O.F.M.
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