Quando os camaristas de Tamanduá alegaram que deixando a região sob o domínio de Goiás, ela se tornaria “...quilombo ou couto das assíduas hostilidades de violentas mortes e roubos e aos escandalosos extravios do ouro em pó e diamantes...”, não deixavam de ter razão em determinados pontos.
É evidente que eles estavam valorizando a sua posse na região. Esta valorização se fazia principalmente no referente à cobrança dos quintos. Se perdessem a área, os cofres reais também perderiam. Não seria um bom negócio nem para Minas Gerais, nem para a Coroa. Mas os camaristas estavam corretos quando diziam que a região ficaria sem controle se passasse para o domínio de Goiás. Índios e quilombolas sempre foram empecilhos ao desenvolvimento da região, mesmo com os avanços e ataques que sofriam por parte das Câmaras mineiras desde pelo menos o final do século XVII e início do XVIII. Como ficaria a área dependendo de expedições promovidas pela capitania de Goiás, distante e sem condições financeiras para arcar com as despesas? Quem controlaria os “bárbaros”?
Em função de tudo o que foi exposto, a Rainha ratificou os limites anteriores para as duas capitanias. A divisão seria o Rio de São Marcos, desde a sua foz no Paranaíba até a Barra do Ribeirão dos Arrependidos.
Após a delimitação da área compreendida como sendo formadora do Campo Grande, ou seja, do Sertão, busquemos as imagens elaboradas para esta região. Ela era descrita sempre com palavras que procuravam demonstrar sua grandiosidade: enormes extensões de terras por todos os lados, suas muitas serras sempre elevadas, e seus incontáveis rios caudalosos que fugiam sempre do controle quando em épocas de chuvas, tornando a região um grande pântano de difícil controle e permanência em função das doenças. O Rio São Francisco em épocas de chuvas inundava de tal forma a região que “... chega[va] a sobrepor as suas águas cinco e seis léguas, cobrindo todas as fazendas, que se acha[va]m em dez léguas de distância das suas margens, e a sua furiosa corrente destrui[a] casas e conduzi[a] a maior parte dos gados...”. Esta grandiosidade também pode ser vista de uma outra forma: tratava-se, segundo os depoimentos, de um local habitado por incontáveis números de tribos errantes e em estado selvagem, incapazes de qualquer tipo de atitude humana e civilizada.
O Sertão mineiro era também uma região que, para os colonos, seria pautada pelo descontrole e pelo excesso. Tudo era visto como excessivamente grande e difícil. Desbravá-lo significava reunir forças, pessoal e dinheiro, tidas como descomunais. Para conquistá-lo era necessário pacificar hordas intermináveis de índios; alguns poucos eram identificados como mansos, mas a maioria era tida como bravia e nem um pouco disposta a aceitar a escravização ainda que disfarçada dos brancos.
A existência de inúmeros quilombos na região demonstrava todo o tempo, os limites da escravidão e o quanto ela poderia colocar a segurança do sistema em risco quando se perdia o controle sobre os cativos. Os índios e os quilombolas passaram a ser associados a empecilhos à expansão e, por que não, à civilidade apregoada pelas autoridades. Eram vistos declaradamente como inimigos públicos. A associação dos quilombolas e dos índios, considerados como bárbaros, com a noção de inimigos não era nova. Em 1697, o padre Pero Rodrigues, religioso da Companhia de Jesus, ao escrever uma carta para o padre João Alvares, informava que por aqui existiriam “...três gêneros de inimigos por mar e por terra e um só amigo, e chega a tanto a cega cobiça que só aos amigos fazemos guerra, largando o campo aos contrários, e deixando os cada vez tomar mais força e ânimo...” Para o padre, os três inimigos seriam: os franceses que ameaçavam o domínio de Portugal em algumas áreas da colônia; os escravos fugidos “...negros da Guiné alevantados que estão em algumas serras, donde vem a fazer saltos e dar algum trabalho e pode vir tempo em que se atrevam a cometer e destruir as fazendas, como fazem seus parentes na Ilha de São Thomé...” e os indígenas que não aceitavam a colonização. Estes eram para ele, “...uns gentios por extremo bárbaros por nome Aymorés...” O único aliado na manutenção do Império seriam os índios pacificados que não recebiam tratamento condigno, apesar de terem aceitado a verdadeira palavra de Deus e abandonado seus bárbaros costumes.
Segundo Pero Rodrigues, a diferença era clara. Havia aliados e inimigos, e estes eram todos aqueles que não colaboravam com o estabelecimento do Império Colonial. Para ele, ser francês invasor, negro fugido e aquilombado ou índio hostil, não fazia a menor diferença. Eram todos perigosos porque além de colocarem em risco uma situação por si só já difícil de controlar, eram também não católicos. O perigo era muito maior do que parecia, pois se corria o risco de perder a colônia não só fisicamente, mas também e principalmente, no sentido espiritual.
Para piorar a situação, os colonos, além de não perceberem este fato, tratavam os que, segundo o padre, seriam os amigos - os índios pacificados - como se inimigos fossem. Estes haviam abandonado seus “bárbaros costumes” e aceitaram a “verdadeira palavra de Deus”, mas mesmo assim não recebiam tratamento condigno. Sua carta não explicita que tipo de tratamento os índios que de acordo com ele eram pacíficos, estavam recebendo. Mas, conhecendo a realidade dos contatos entre brancos e índios, podemos inferir que o problema passava pelo uso que se fazia dos indígenas enquanto mão-de-obra e pelo controle sobre suas terras.
Pode-se perceber ao analisar a documentação produzida pelas expedições enviadas ao Sertão de Minas Gerais e lideradas por Bartolomeu Bueno do Prado e pelo Mestre de Campo Ignácio Correia de Pamplona, a identificação da existência de uma concepção própria do que viria a ser Sertão.
As notícias dadas pela expedição de Ignácio Correia de Pamplona mostram a noção que as pessoas tinham de tais áreas como sendo uma região isolada e propensa a servir de esconderijo aos escravos fugitivos : “... pois como no Sertão não mora mais ninguém, é infalível conseqüência que os fogos haviam ser dos mesmos negros [quilombolas] ...”
Sertão, para os mineiros, era tudo o que foi exposto acima, mas havia mais do que isto. A documentação deixa entrever que inúmeras nuanças permeavam os conceitos e os sentidos do que viria a ser esta área, sendo os valores e os seus significados bastante claros, ultrapassando sempre a noção espacial. Este conceito carregava consigo concepções de uma época e de imagens próprias àquela sociedade.
Esta região era sempre associada à idéia de ser um território vazio onde reinava a desordem, a barbárie e a selvageria, graças ao fato de ser um lugar habitado por índios e por quilombolas. Há nesta colocação uma contradição latente: trata-se segundo as fontes, de um território vazio. Contudo, as mesmas fontes indicam que a região é habitada por índios e negros fugidos. Na realidade, para as autoridades, era uma região vazia de elementos civilizados e civilizadores e que precisava ser ordenado e controlado, o que só se conseguiria no momento em que a ocupação efetiva da região fosse possível através de uma população civilizada.
Há na documentação duas possibilidades para perceber como que a população entendia o Sertão mineiro. Uma positiva e outra negativa. Se, por um lado, o Sertão era visto como local por excelência do descobrimento de ouro e da riqueza rápida, havia, também, um grande medo envolvendo sua conquista. Era um local associado à fome, a guerras com índios e escravos fugidos, às más condições de vida, à insegurança e à morte.
Era um local que para ser trazido à civilidade precisava ser conquistado, ou seja, para aquelas pessoas que, de uma forma ou de outra, necessitavam conviver com a região, ela precisava ser “desinfestada” dos elementos que simbolizavam a sua barbárie: escravos fugidos, índios e vadios. As expedições de conquistas visavam povoar e civilizar estas áreas trazendo-as para o sistema. Elas eram importantes porque o aumento da arrecadação de impostos e da extração de ouro eram essenciais para diminuir os efeitos da crise econômica que se vivia. A idéia era levar a regiões longínquas o sentido de pertencimento a uma estrutura maior, qual seja, a do Império Colonial Português.
Se uma das imagens construídas sobre o Sertão era a de que se tratava de um lugar bom, com capacidade para grandes fazendas e, principalmente, possuidor de ouro, havia também a associação desta imagem à existência de perigos que impossibilitavam seu povoamento. Os índios, os quilombolas e os vadios eram vistos por todas as partes e provocavam na população um pânico generalizado. Os ataques faziam com que fazendas fossem abandonadas e sesmarias requeridas não fossem ocupadas.
“...o Sertão tinha mostras de ser bom e capacidade de boas fazendas e inda boas formações de ouro, porém contudo, que tinham dado graças a Deus muitas vezes por se verem livre dos sustos e receios que tiveram de não sair cá fora nenhum com vida porque até certa altura é muita a negraria e que tudo são quilombos, e de certa altura por diante tudo gentios...”
Trecho de um trabalho de Marcia Amantino.
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