No final do século XVIII, o Padre Manoel Vieira Nunes, em uma carta enviada ao Conde de Valadares (1768-1773), mostra isto de maneira muito clara. No aldeamento de Laranjeiras estavam reunidos dois grandes grupos de nações indígenas: o primeiro, formava-se com as nações “...Manhoxos, conunhoxós e machacalis” ; o segundo grupo com os “...maycunis, panhamos a cataxos”. O Padre declara que havia boa relação entre eles e os brancos, mas que “... uns e outros não se devam julgar amigos contudo não se devem denominar inimigos por que não nos fazem hostilidades...”. Continua a carta afirmando que o primeiro grupo utiliza-se da amizade dos colonos para atacar os inimigos de ambos e que sempre é necessário desconfiar dos índios porque além deles serem inconstantes por natureza, têm uma índole desconfiada. Além de tudo, o Padre desconfiava que:
“... E mais sempre se deve presumir que a necessidade os obriga a conservar a nossa amizade com que podem melhor castigar os seus inimigos assim capochoses como aimorés, os primeiros rebeldes infiéis dissimulados na paz que tem assassinado algumas pessoas nossas. E os segundos rebeldes pertinazes e vorazes da carne humana que nunca deixam e nem se param de nos danificar e aos nossos confederados gravissimamente...”
Desta maneira é fácil entender porque determinados grupos indígenas chegaram até o século XIX lutando contra outros, aprisionando e auxiliando os portugueses no controle de áreas pertencentes a outros grupos e na sua escravização.
Esta elaboração mental mostrando os habitantes do Sertão como sendo inferiores aos do litoral, permaneceu na construção das primeiras obras da historiografia brasileira e, a partir dela, criou-se a dicotomia entre Tupi e Tapuia.
Cardim, em 1621, após relatar as características dos Tupi apresentados como amigos dos portugueses, passou a demonstrar como que os Tapuia eram diferentes, inferiores e selvagens. Viviam nos matos, não utilizavam o fogo para cozer os alimentos, matavam crianças, devoravam inimigos, possuíam couros ao invés de peles, eram covardes, despovoavam regiões, não falavam uma língua que pudesse ser entendida e eram extremamente perigosos.
“... Há outras nações contrarias e inimigas destas, [dos Tupi] de diferentes línguas, que em nome geral se chamam Tapuya, e também entre si são contrarias ... e para o Sertão quanto querem, são senhores dos matos selvagens, muito encorpados, e pela continuação e costume de andarem pelos matos bravos tem os couros muito rijos, e para este efeito açoitam os meninos em pequenos com uns cardos para se acostumarem a andar pelos matos bravos; não têm roças, vivem de rapina e pela ponta da frecha, comem a mandioca crua sem lhes fazer mal, e correm muito e aos brancos não dão senão de salto, usam de uns arcos muito grandes, trazem uns paus feitiços muito grossos, para que em chegando logo quebrem as cabeças. Quando vêm á peleja estão escondidos debaixo de folhas, e ali fazem a sua e são mui temidos, e não ha poder no mundo que os possa vencer; são muito covardes em campo, e não ousam sair, nem passam água, nem usam de embarcações, nem são dados a pescar; toda a sua vivenda é do mato; são cruéis como leões; quando tomam alguns contrários cortam-lhe a carne com uma cana de que fazem as frechas, e os esfolam, que lhes não deixam mais que os ossos e tripas: se tomam alguma criança e os perseguem, para que lha não tomem viva lhe dão com a cabeça em um pau, desentranham as mulheres prenhas para lhes comerem os filhos assados...não se lhes pode entender a língua..”
Além de demonstrar o quanto eram diferentes os Tupi dos Tapuia, Cardim também faz um tipo de análise que será constante em diversos cronistas. Ele associa o índio não domesticado a animais, aqui no caso, ao leão; são ferozes e antropófagos, comendo inclusive, para grande pavor dos cristãos, mulheres e crianças, e, principalmente, não se consegue compreender a língua, o que confirma o grau de barbárie que este povo estaria na mentalidade destes homens nos primeiros contatos. Esta barbárie pode ser percebida também pelo fato dos Tapuia não dominarem a agricultura e a pesca e nem utilizarem o fogo para cozer seus alimentos.
Trecho de um trabalho sobre Minas Gerais colonial de Marcia Amantino.
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