A Bíblia relata que após ficar durante quarenta dias fechado na arca com sua família e os casais de animais, Noé, uma vez baixadas as águas, resolveu dedicar-se à plantação da vinha. Um dia, embriagado, deitou-se completamente despido e dormiu em sua tenda. Seu filho caçula, Cam ali o surpreendeu e foi comentar com os irmãos, Sem e Jafé. Estes, ao saberem do estado do pai, o cobriram sem olhar para seu corpo. Quando Noé soube do que havia acontecido, em represália a atitude de Cam, amaldiçoou-o e a toda sua descendência dizendo: “...Maldito seja Canaã, servo dos servos seja aos seus irmãos ... Bendito seja o Senhor Deus de Sem; e seja-lhe Canaã por servo...”1.
Começava assim, pelo menos para o mundo Ocidental Católico, a saga e o cativeiro do povo africano associado aos descedentes de Cam. A partir desta história, a Europa Cristã legitimava o cativeiro da África negra que, associado aos ensinamentos religiosos, serviria para purificar este povo amaldiçoado. Seria uma nova oportunidade para a redenção dos pecados do passado.
Ainda que a Bíblia tenha criado a primeira justificativa para o cativeiro dos africanos, não foi a única. Outras idéias que procuravam legitimar a escravidão surgiram através dos viajantes que percorriam aquele território desde o século XV. Suas descrições sobre os povos, formas de vida e de relacionamentos foram utilizadas pela sociedade cristã ocidental na elaboração de diversas imagens sobre os negros, que foram sendo forjadas nãosó nos contatos dos primeiros cronistas que visitaram a África, mas também através de crenças desenvolvidas a priori ao próprio contato. Iniciava-se assim, um lento processo de construção de representações sobre este povo com o objetivo maior de legitimar ou justificar a sua escravidão.
Zurara, Cadamosto, Alphonse de Saintonge e Pacheco Duarte Pereira, escrevendo entre o final do século XV e início do XVI, são apenas exemplos de como seus discursos foram sendo apropriados pelas elites para criar uma visão do que seria o africano e de suas possíveis utilizações.
Texto Anterior: A escravização dos índios no século XVIII e a posição do Conde de Valadares.
1 Bíblia Sagrada. Gênesis, capítulo 9, versículos 20 e ss. 151 Bíblia Sagrada. Gênesis, capítulo 9, versículos 20 e ss.
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